Basicamente, como parte importante de seu pensamento, Foucault propõe uma genealogia do poder. O intuito, nesse caso, é observar como o poder atua ao disciplinar e moldar o corpo por meio das relações sociais; que, de modo geral, são desiguais e devem ser pensadas como operações políticas assimétricas. Ainda assim, para Foucault, o poder não se resume a uma aplicação de cima para baixo, somente em função dos “dominantes” para subjugar os “dominados”; pois, para ele, todo indivíduo se encontra, constantemente, em uma teia de relações de poder que é formada por diferenças hierárquicas particulares.
Ele, o poder, segundo Foucault, através de procedimentos ligados ao controle dos gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos etc., atinge a realidade concreta dos indivíduos; ou seja, o corpo. O objetivo, no entanto, na maioria dos casos, não é mutilar, mas, sim, aprimorá-lo, adestrá-lo. E é justamente nesse ponto que há relações entre a forma como o poder, dentro do pensamento de Foucault, atua, e o enredo do filme de Anna Muylaert.
De modo geral, Que Horas Ela Volta? aborda o cotidiano de uma família de classe média alta da cidade de São Paulo. O filme tem como elemento basilar as relações construídas dentro do âmbito familiar e apresenta, ainda, como eixo norteador da narrativa, os arrolamentos que envolvem a personagem Val e os patrões.
Na obra, há vários momentos que permitem uma leitura foucaultiana. E os movimentos de câmera, em ocasiões diversas, produzem esse entendimento. Por exemplo: sempre que os patrões jantam o nosso olhar é direcionado pelo ponto de vista de Val, em um enquadramento que limita a visão da sala de jantar ao focar a parede que divide o ambiente da empregada e dos patrões. Uma metáfora, nesse caso, que demarca espaços e mundos diferentes. Apesar de Val, muitas vezes, ser “classificada” no discurso como parte da família. Ainda assim, contudo, é a chegada de Jéssica que escancara as relações de poder existentes, que, inclusive, em momentos diversos, ocorrem de modo sutil.
A filha de Val não aceita as divisões estabelecidas. Há uma sequência, por exemplo, em que Jéssica questiona Val: “eu não sei onde tu aprendeu essas coisas que fica falando: não pode isso, não pode aquilo. Tava escrito em livro? Como é que é, quem te ensinou?” Val responde: “isso aí ninguém precisa explicar não. A pessoa já nasce sabendo, o que pode e o que não pode”.
Retornando para o papel do poder no pensamento de Foucault, os valores, as crenças e as normas, por exemplo, segundo o autor, são moldados pelo poder. Um poder que se ramifica na sociedade e que é exercido nas relações sociais. O fato de Val, nesse caso, delimitar inconscientemente quais os espaços da casa que podia frequentar, quais os alimentos que podia consumir, coaduna com a perspectiva foucaultiana. Que Horas Ela Volta?, desse modo, me parece uma ótima experiência para discutir o papel do poder sob a ótica de Michel Foucault.