De modo geral, quando penso em filmes latino-americanos a minha consciência remete a um “cinema de arte”, a um cinema que circula em festivais. É como se essa denominação fosse uma espécie de selo que compreende um tipo específico de cinema. E não deixa de ser verdade: não costumamos definir filmes produzidos pela Globo, por exemplo, como latino-americanos. Ainda que sejam brasileiros e o Brasil faça parte da América Latina. A ideia de um cinema latino-americano, nesse caso, é fruto de uma perspectiva cinematográfica que remete às experiências de um ideal de terceiro cinema, por exemplo. Trata-se, desse modo, de um selo específico que alude a um modo singular de fazer filmes.
Dentro desse modo singular, todavia, há uma certa tendência pelo olhar voltado para as margens sociais. Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Jorge Sanjinés são alguns dos que fizeram isso na década de 1960. Quando a ideia de uma estética da fome redundou a miséria em técnica. Hoje, contudo, ainda se enxerga essa mesma tendência: ainda que, do ponto de vista da técnica, filmes como Cidade de Deus e Elefante Branco rompam com a tradição anterior, eles compartilham de um mesmo olhar para as margens sociais. Evidentemente, no entanto, com uma abordagem centrada em um outro tipo de sociedade. Movimento que Ivana Bentes, por exemplo, classificou como transição de uma estética para uma cosmética da fome.
Ainda assim, a grande questão, pelo menos pra mim, é perceber que, do ponto de vista temático, essa mesma perspectiva atravessa a cinematografia de diferentes países da região. Rompe com a ideia de uma cinematografia nacional e se converte em algo maior. E isso atesta o nosso subdesenvolvimento. Um subdesenvolvimento compartilhado que demonstra que, por exemplo, apesar de nossa elite econômica se enxergar como europeia e/ou norte-americana; na verdade estamos mais próximos da Venezuela e da Bolívia.
Ora, há uma parcela considerável de filmes colombianos, brasileiros, argentinos, venezuelanos, mexicanos, nicaraguenses, panamenhos etc. que se voltam para as margens sociais de um modo que, no âmbito do cinema, cidades como São Paulo (Linha de Passe), Buenos Aires (Elefante Branco), Caracas (Hermano), Cidade do México (Dias de Graça), Cidade do Panamá (Sequestro a Domicílio), Manágua (La Yuma), Bogotá (Las Tetas de Mi Madre) etc. formam um único ambiente imaginário: compartilham de uma mesma realidade fílmica marcada por problemas como desigualdade social, desemprego, tráfico de drogas e violência urbana, por exemplo. E esta foi a minha tese de Doutorado. Dei o nome de cinecidade a esse espaço urbano comum.
A cinecidade, nesse caso, é resultado de um uma paisagem simbólica contínua que, apesar de representar espaços distintos, forma um único ambiente imaginário. Consequência da significação resultante da produção de um sentido cultural próprio e comum para as cidades tematizadas no cinema. No caso, latino-americano, em específico, essa cinecidade tem sua origem ligada ao período colonial, passa ainda por um modelo de industrialização dependente, e, por fim, se aprofunda em um contexto de neoliberalização. Por exemplo: nos governos de Collor, Menem e Caldera, Brasil, Argentina e Venezuela, respectivamente, enfrentaram condições socioeconômicas catastróficas. O desemprego atingiu 17% em Buenos Aires, 15% em São Paulo e 50% em Caracas (Ler: Neoliberalismo – América Latina, Estados Unidos e Europa, de James Petras).
Enquanto a estabilidade macroeconômica elevava os ganhos da elite financeira, a instabilidade familiar se aprofundava devido ao desemprego. De 1991 a 1994, por exemplo, se impôs uma estrutura macroeconômica neoliberal à região, pautada em um regime cambial fixo valorizado, e isso gerou déficits comerciais até 1999. Esse período foi seguido de uma forte crise econômica. Por exemplo: no ano de 2002, a pobreza estrutural na Argentina alcançou 54,3% de toda a população nacional (Ler: Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina, de Carlos E. Martins).
As imagens da América Latina, desse modo, levam em conta a dinâmica histórica e o cotidiano. Cada um de seus países carrega índices elevados de desigualdade social. E os cinemas nacionais, por meio de um caráter hiper-real, espetacular, reflete, justamente, essa parte importante da realidade desses espaços. Isso significa que as metrópoles latino-americanas não poderiam ser representadas de outra maneira? Claro que não. Há filmes que atestam isso. De todo modo, quando se filma nesses países, essa é uma realidade bastante significativa; e que, inclusive, em muitos casos, se mostra como imaginário dominante.