Há um bom tempo, a ideia de uma pós-modernidade tem atravessado as Ciências Humanas. Nesse ponto, sem querer adentrar em polêmica, caminho com os modernos. Sigo com Habermas e Berman, por exemplo, ao compreender a modernidade como um projeto inacabado. Do mesmo modo, tenho em mente que a transformação do modo de produção é aspecto basilar para uma mudança de era. E, nesse caso, como isso não ocorreu: o capitalismo, apesar de apresentar diferentes formas, segue como modo de produção dominante, não é possível falar em ruptura.
Como disse, no entanto, não quero polemizar a discussão. Este, inclusive, não é o lugar. Toda questão complexa necessita de um espaço amplo para a construção de argumentos sólidos. E o Instagram, creio que vocês concordem, definitivamente, não é esse espaço. De todo modo, se nas Ciências Sociais a discussão da pós-modernidade é um ponto de tensão e conflitos, no universo da arte não me parece do mesmo modo. Posso estar enganado. Ainda assim, Gilles Lipovetsky, por exemplo, fala sobre isso. Não lembro exatamente o livro. No entanto, muito provavelmente, é em algum desses: Felicidade Paradoxal, Cultura-Mundo ou A Estetização do Mundo. Deixemos essa dúvida de lado: ela não é tão importante nesse momento. O argumento, por outro lado, é.
De modo geral, a ideia de uma pós-modernidade artística leva em conta uma certa noção de ausência criativa. Melhor. Ausência de novidade. Para chegar a essa conclusão, todavia, é preciso entender, ainda que brevemente, o que foi a modernidade nas artes. Basicamente, a noção de modernidade, no âmbito do universo artístico, se relaciona com a ideia de novidade, ruptura. A arte moderna rompeu com as convenções tradicionais. Por exemplo: se antes do século XIX a preocupação das artes plásticas era reproduzir o mundo o mais próximo possível do olhar humano, com o advento da fotografia essa preocupação deixou de fazer sentido. Justamente por isso, surgiram as vanguardas modernas: impressionismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo etc. A arte moderna, nesse caso, é a busca incessante pela novidade. E é justamente a sua ausência que denota uma pós-modernidade artística. E esse é o grande paradoxo, a complexidade, que alicerça o cinema de Kiarostami. Explico-me.
Em filmes como Onde Fica a Casa do Meu Amigo, Gosto de Cereja e Close-Up há a apropriação de códigos estilísticos de vanguardas com o intuito de ordenar cada uma de suas narrativas. Somado a isso, esses códigos se hibridizam às particularidades do Irã. Refiro-me, precisamente, ao Neorrealismo italiano e à Nouvelle Vague francesa. No primeiro dos filmes, há elementos estruturais e narrativos que remetem aos clássicos de Vittorio De Sica. Por exemplo: 1) o uso de atores não profissionais, 2) uma intriga relativamente simples. Em Ladrões de Bicicleta a narrativa se concentra no furto de uma bicicleta, no filme de Kiarostami na busca pela casa do amigo; 3) a exploração de locações reais que escancaram um espaço degradado por guerras e marcado pela miséria.
De modo parecido, Close-Up e Gosto de Cereja também se apropriam de códigos e padrões da Nouvelle Vague. No primeiro, a montagem opaca remete a filmes de Godard; somado a isso, a fronteira tênue entre ficção e documentário lembra o cinema de Agnès Varda. Basta lembrar do estilo documental em Cléo das 5 às 7, por exemplo. Gosto de Cereja não é diferente. A insatisfação de Badii é a mesma de Ferdinand (Pierrot le Fou). E as duas são consequências de um olhar direcionado pelo existencialismo. Vale lembrar, nesse caso, que o existencialismo, que atravessa as obras de Sartre e Beauvoir, e a literatura de Camus, pode ser caracterizado pela ideia de atitude existencial. Fruto de desorientação e confusão face a um mundo aparentemente sem sentido. Sentimento que, além de Badii e Ferdinand, também é compartilhado por Meursault (O Estrangeiro). Não preciso lembrar, creio eu, que o existencialismo dominou a França da segunda metade do século XX. Sendo, inclusive, um traço característico na Nouvelle Vague (Bande à Part, Os Incompreendidos etc.), justamente pelo fato de refletir os anseios da juventude francesa. Não por acaso, o Maio de 68 tem no existencialismo uma de suas bases.
Ainda assim, onde está o paradoxo de Kiarostami?
O que acabei de demonstrar foi uma tendência pós-moderna de seu cinema. Uma tendência definida pelo retorno ao já feito. Ainda que os aspectos culturais do Irã sejam uma novidade quando comparados com os modelos do Neorrealismo e da Nouvelle Vague, eles não são suficientes para demarcar uma ruptura. O que não quer dizer que o cinema de Kiarostami é um cinema menor. Não é disso que se trata. Retornando, contudo, para a questão do paradoxo, é importante notar que o cinema de Kiarostami não se resume às três obras que foram citadas. Five, por exemplo, é um filme que preza pelo ineditismo e que aposta na novidade. Nele, através de cinco curtas, Kiarostami faz experimentações. Como o fato de ter sido rodado com câmera digital, e, além disso, composto por planos-fixos e ausência de montagem. Ainda assim, Kiarostami consegue se apropriar do imaginário cinematográfico. Por exemplo: no primeiro curta, o diretor acompanha o vai-e-vem de um tronco de árvores nas ondas do mar. O que remete, por exemplo, ao processo de identificação entre espectador e herói: nos vemos torcendo para que o pedaço de madeira não seja sucumbido pela onda do mar. Dessa forma, eis o paradoxo do cinema de Kiarostami: ao mesmo tempo em que retorna para o já feito, para os códigos consolidados do cinema moderno, ele também experimenta na tentativa de criar novas formas, ou seja, novos caminhos para o constante desenvolvimento da linguagem cinematográfica. Trata-se, nesse caso, de uma obra que pode ser pensada, ao mesmo tempo, do ponto de vista artístico, por meio de códigos pós-modernos e modernos. E não há nenhuma ambiguidade nisso.